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11 fevereiro 2005

A intenção de produzir mal-entendidos

Por Pedro Cardoso


O modo como parte da imprensa tem tratado as minhas declarações sobre a presença da pornografia disfarçada de obra de arte ou entretenimento nos meios de comunicação em massa, e o consequente aviltamento que isto traz para a profissão de ator e atriz, pode induzir a uma má compreensão do que eu tenho dito.

Alguns insistem em restringir minhas palavras ao cinema, quando eu estava falando também de televisão; outros tentam reduzir o que eu disse a uma questão sobre a nudez, mera e simplesmente, como se não houvesse muitos modos de nudez; e há também aqueles que buscam declarações de terceiros que, pela leviandade do que dizem, certamente não leram ou não entenderam o que eu escrevi; e há mesmo jornalistas que mentem ao dizer que minhas declarações encontraram mais reprovações do que apoios (este não cita as fontes de onde teria tirado tal conclusão); além de um colunista social que lança meu nome toda vez que quer anunciar o advento de uma cena de nudez.

Essa intenção de confundir para destruir (fruto de grande insensibilidade e subserviência a um suposto interesse comercial da empresa para qual trabalha) pode prejudicar a saúde da conversa que temos tido aqui. Por isso, no texto que se segue, eu tento indicar o que, acredito, seja a razão mais profunda que mantém essas pessoas insensíveis a questão que eu levantei.

A pornografia e a educação

1) A primeira vez em que a opressiva presença da pornografia disfarçada de entretenimento ou obra de arte nos meios de comunicação em massa me angustiou seriamente, foi quando me vi preocupado com certas cenas levadas ao ar na TV aberta que poderiam causar desnecessária ansiedade em minhas filhas. Muito provavelmente, para muitas pessoas, a preocupação com a presença da pornografia na TV aberta é despertada pela circunstância de ter filhos para criar, assim como foi para mim.

Aqueles que, diariamente, lidam com a tarefa de educar alguém, sejam seus filhos naturais, adotados, ou mesmo crianças com as quais mantêm laços afetivos, ou mesmo aqueles que tenham, por quaisquer outras razões, interesse em educação, encontram-se permanentemente diante da questão de como fazê-lo. E nesse esforço, defender as crianças da pornografia é uma tarefa urgente.

Talvez, aqueles que nunca atentaram para a invasão da pornografia, e desprezam a sua violência, é porque nunca tiveram a quem educar; não têm filhos, ou, se os têm, não são eles que os educam.

Não é por acaso que alguns comentários de leitores neste blog fazem referência ao fato de não deixarem seus filhos assistirem televisão.

2) Eu penso que para lidar naturalmente com a chegada da vida sexual, a criança precisa já ter desenvolvido a compreensão de outros fatos da existência que não apenas as questões da vida sexual ela mesma. É muito agressivo para aquele que ainda não amadureceu, e que portanto não despertou para as ansiedades sexuais, ser apresentado à elas antes do que tempo em que a elas chegaria por conta própria. É mesmo uma maldade lançar uma criança nessa perspectiva.

Sei que as crianças têm mecanismos bem eficientes de verem apenas o que já podem ver, de perceber apenas o que já podem entender. Mas há momentos em que elas estão já quase preparadas para conhecer certas realidades, mas ainda não o estão. Nesses momentos, suas defesas contra aquilo que as inquietará, é frágil. Essa é a hora do seu desamparo.

E temos que considerar também que o desenvolvimento psicológico é um processo individual; cada um se prepara para os fatos da vida a seu tempo. O mesmo fato (ficcional ou real) pode, em dado momento, já ser amigável para uma criança, e não o ser para outra. Por isso penso que os que trabalham com comunicação em massa devem respeitar a inocência daqueles que nela ainda se encontram. Há um tempo certo para tudo, assim como há um horário adequado para cada programa.

3) Um dia, um amigo contou para outro que havia levado um tapa na cara de um policial. Ele descreveu com precisão e riqueza como tudo havia acontecido. O outro respondeu que compreendia perfeitamente como o amigo estava se sentindo e que aquele tapa já estava até mesmo doendo nele. Dez anos depois, esse outro recebeu, ele, um tapa na cara de um policial. Quando encontrou com a amigo daquele dia, disse à ele que só agora, ele realmente conhecia a dor de um covarde tapa na cara.

Conhecemos melhor aquilo que nos é dado viver. Acho que a presença da pornografia na TV aberta é menos percebida por aqueles que nunca despertaram para questões relativas a educação.

Os que têm levianamente se oposto a mim, deveriam se perguntar se algum dia perderam um segundo de suas vidas atentos a alguém que não eles mesmos. Os que vivem num narcisismo hedonista têm grande dificuldade de perceber a solidão de uma criança diante de um mundo que ela não compreende. Talvez, eles mesmos tenham sido vítimas desse abandono, e por isso mesmo, embora já sejam adultos, ainda não o perceberam; e permanecem tratando da questão da pornografia infantilmente.

4) Há muitos modos de exercer a paternidade e a maternidade além de criar os filhos naturais. Esta dimensão da vida é semelhante ao patriotismo. Não é preciso ser o mártir de uma guerra qualquer para amar um país; nem é preciso ter filhos naturais para amar alguém mais do que a si mesmo. É preciso apenas querer compreeender que a vida é um acontecimento social e sentir responsabilidade pelos outros.

Quando minhas filhas nasceram, tudo na minha vida melhorou. Eu fiquei mais sério e consciente da dimensão política do meu trabalho. Aqueles que têm me criticado irrefletidamente (e, ao contrário do que diz o jornalista mentiroso, são muito menos do que aqueles que têm tido um diálogo consequente comigo, mesmo com discordâncias pontuais) deveriam olhar para o lado e ver o que está acontecendo. É só olhar.

5) Em consideração à natureza íntima da vida sexual, eu penso que a TV aberta deve apresentar uma programação que, na medida do possível, não traga temas inquietantes para aqueles que ainda não estão prontos para viver aquelas inquietações. A vida sexual é um tema complexo por sua própria natureza. Há muitas histórias que podem ser contadas onde a vida sexual dos personagens não tem relevância. Não se confunda aqui sexualidade com vida sexual. Sexualidade sempre há; vida sexual, apenas quando o desenvolvimento da história passa por fatos que ocorrem nos encontros sexuais. E, repito, há muito para ser contado sem que seja preciso entrar por dentro da vida íntima dos personagens.

6) Ainda um apêndice.
A convivência com os fatos da vida sexual é particular, íntima. São experiências que se dão em segredo, em silêncio. Aos expor crianças ou adolecentes, e mesmo adultos, a imagens pornográficas, uma vez que é impossível à sensibilidade fugir a esses estímulos, estamos forçando-os a compartilhar com a família, ou com os amigos, uma intimidade sua, que deveria, por todas as razões, manter-se privada. Esse é o constrangimento que sentimos quando, diante da TV ou no cinema, somos afrontados com algo que tem por intenção provocar excitação sexual. Este constragimento é a última fronteira do nosso pudor. Um dos desastres de a pornografia se disfarçar de entretenimento é ela assim assaltar a nossa intimidade e nos forçar a compartilhar sensações eróticas sem que o tenhamos desejado. Muitos comentários aqui se referem a esse constrangimento.

8) Estou escrevendo um texto sobre o que seria a pornografia e quais seriam os seus disfarces, e outro sobre as diferenças do modo como as imagens e as palavras nos atingem. Mas estou ainda no começo e devo me demorar. Mas deixo desde agora uma compreensão que me veio enquanto trabalhava nesses texto:
O meu inimigo não é nenhuma empresa ou pessoa em particular (embora haja pessoas e empresas que são coniventes ou promotoras da pornografia). O meu inimigo é um fato histórico-cultural, do qual é preciso nos dar-mos conta.

E gostaria de dizer ainda que, embora eu tenha pensado tanto nisso ultimamente, sei que a pornografia não é o nosso único, nem o nosso maior, problema. Ela é apenas aquele que, por força da minha profissão, é o mais evidente para mim.

03/11/2008