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17 outubro 2005

CORPORATIVISMO CIENTÍFICO

Girafas, mariposas e anacronismos didáticos – II


Isabel Rebelo Roque (*)

No primeiro artigo sobre este tema, publicado na edição anterior deste Observatório, tratei do clássico exemplo do pescoço das girafas, utilizado em inúmeros materiais didáticos para contrapor darwinismo e lamarckismo [veja remissão abaixo]. O bloco final daquela primeira parte especulava sobre as possíveis razões de se perpetuar um exemplo irrelevante do ponto de vista histórico e inadequado do ponto de vista científico.

Nesta segunda parte, abordarei um assunto que, em certa medida, apresenta pontos em comum com o anterior, mas se reveste de detalhes um pouco mais delicados. Além disso, certas especificidades têm feito com que se mantenha em maior evidência na mídia científica.

Neste mês de agosto está sendo lançado nos Estados Unidos o livro Of moths and men, escrito pela jornalista Judith Hooper e já lançado na Inglaterra há alguns meses. Sobre ele, o editor de ciência Nicholas Wade escreveu a resenha "Staple of evolutionary teaching may not be textbook case", na edição de 18 de junho de 2002 do jornal The New York Times.

A publicação do livro de Hooper lança luz sobre um assunto que vinha se mantendo restrito a um determinado círculo: o dos que defendem as idéias criacionistas ou intervencionistas – mais modernamente, as idéias do "design inteligente" –, e que vivem à cata de pontos fracos na teoria da evolução de Darwin.

Mais um exemplo clássico


Nas aulas de Ciências e Biologia, aprendemos que, por meio de um processo denominado "melanismo industrial", populações de mariposas do gênero Biston, encontradas na região de Manchester, na Inglaterra, sofreram alteração em seu padrão de cor.

Isso teria acontecido mais ou menos assim: antes da Revolução Industrial, os troncos das árvores das florestas habitadas pelas mariposas Biston tinham grande quantidade de liquens (associação entre algas e fungos), que lhes conferiam cor esbranquiçada. O padrão de cor predominante nas populações dessas mariposas, na época, era claro, e elas facilmente se camuflariam, isto é, se confundiriam com a cor dos liquens, ao repousar sobre os troncos. A camuflagem é um importante recurso de sobrevivência em certas espécies: confundindo-se com o ambiente, o risco de ser visto pelo predador diminui.

Com o advento das indústrias, a partir de 1850, o ar, carregado de fuligem e outros poluentes, provocou a morte dos liquens e o escurecimento dos troncos. Como resultado, teria havido uma inversão na vantagem exibida pela cor clara das mariposas: ao repousar sobre troncos escurecidos, elas passariam a ser facilmente visíveis para o predador (nesse caso, determinados pássaros). Com isso, a variedade melânica, isto é, de cor escura, existente em menor número naquelas populações, teria passado a predominar graças à capacidade de passar despercebida ao predador, de se camuflar nos troncos escurecidos.

A partir de 1950, com a criação de leis de controle ambiental à emissão de poluentes, esse padrão novamente se inverteu: troncos com novas populações de liquens, portanto mais claros, passaram a esconder melhor exemplares de mariposas com o padrão de cor clara.

A esse exemplo de melanismo industrial os livros didáticos costumam acrescentar a descrição de uma série de experimentos realizados pelo biólogo Bernard Kettlewell, da Universidade de Oxford, na década de 1950. Muitas vezes, os livros apresentam fotos com o registro dos experimentos – ou então fotos produzidas com o fim de reproduzir esse registro. Tais fotos mostram exemplares claros e escuros de mariposas Biston repousando sobre troncos de árvores.

O que se relata nos livros é que, em seus experimentos, Kettlewell coletou exemplares de mariposas com os dois padrões de cor e os liberou em ambientes controlados que apresentavam troncos também com diferentes colorações. Ao recapturar os exemplares sobreviventes, ele teria constatado o que já se esperava: o índice de sobrevivência era diretamente relacionado ao padrão de cor dos troncos.

Algo de podre


Tudo estaria perfeito, não fossem, como no caso das girafas, alguns senões. O primeiro deles foi a descoberta de que os experimentos de Kettlewell não transcorreram exatamente daquele modo: houve um certo "empurrãozinho", pois as mariposas não estariam vivas, mas teriam sido coladas aos troncos das árvores. O segundo é que o comportamento das mariposas Biston na natureza não se encaixa tão perfeitamente no modelo descrito. O terceiro é que a relação de predomínio de uma cor/grau de poluição ambiental não se manteve como o esperado.

O livro de Hooper não é o primeiro a "devassar" o caso Kettlewell. Há quatro anos foi publicado Melanism: evolution in action, de Michael Majerus, que tratava desse assunto, entre outros. Quem assinou uma resenha sobre ele, publicada na Nature, intitulada "Not black and white", foi Jerry Coyne, do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade de Chicago. Nela, Coyne compara a decepção diante da verdade sobre os experimentos de Kettlewell ao que sentiu quando criança ao saber que Papai Noel não existia...

Coyne comenta que o livro de Majerus é o primeiro a reunir os pontos criticáveis nos experimentos de Kettlewell. O mais grave deles é que as mariposas Biston, em condições naturais, provavelmente não repousam sobre troncos de árvores – em mais de 40 anos de estudos sobre seus hábitos, somente duas delas foram vistas fazendo isso. O local de preferência continua um mistério, mas acredita-se que seria o alto das copas das árvores. Só isso, afirma Coyne, bastaria para invalidar os experimentos de Kettlewell, uma vez que as mariposas, colocadas sobre os troncos, tornar-se-iam altamente visíveis a seus predadores, numa condição artificial que forçaria sua predação. Além disso, Kettlewell expôs suas mariposas durante o dia, quando elas geralmente escolhem locais de repouso à noite.

Mas há ainda um fator para comprometer toda a história: na verdade, o novo aumento na ocorrência da variedade clara aconteceu bem antes da recolonização dos troncos pelos liquens, condição que pretensamente favoreceria a camuflagem da variedade no ambiente. E mais: um crescimento e decréscimo da população da forma melânica, isto é, escura, também se deu paralelamente em áreas industriais dos Estados Unidos, onde, entretanto, não houve alteração na incidência de liquens – o que relativiza bastante o papel destes últimos na história toda.

Em sua resenha, Coyne cita uma análise similar à de Majerus, publicada em artigo quase que simultaneamente: "Sargent et al", Evol. Biol., 30:299-322, 1998. Vale assinalar que se trata do Dr. Theodore Sargent, da Universidade de Massachusetts, que viria a ser a figura central do livro de Judith Hooper lançado agora, quatro anos depois.

Descartar ou não as mariposas?


Majerus admite, em seu livro, as inúmeras falhas do modelo, mas ainda assim considera útil continuar a usá-lo. Jerry Coyne, entretanto, pondera que esse não é exatamente o melhor exemplo a ser utilizado em sala de aula, devido a seus pontos fracos – posição que fez de Coyne, à sua própria revelia, uma "arma" dos criacionistas para atacar os evolucionistas.

Ele sugere como mais apropriado o trabalho desenvolvido por Peter e Rosemary Grant, nas últimas décadas, sobre a evolução do bico dos tentilhões das Ilhas Galápagos. (Sobre o trabalho dos Grant, há um livro de leitura fácil e agradável, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1994 e traduzido para o português: O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo, do jornalista Jonathan Weiner. Ironicamente, enquanto se insiste em utilizar, com tantos "furos", a história das mariposas nos livros e nas aulas, a adoção do estudo dos Grant acabaria contando mais pontos para Darwin. Afinal, foram exatamente os tentilhões observados nas Galápagos, durante sua viagem no Beagle, que o levaram a formular sua teoria da evolução por meio da seleção natural.)

Em sua resenha de 18 de junho no New York Times sobre o livro de Judith Hooper, Nicholas Wade compara o "empurrãozinho" dado por Kettlewell a um recurso humorístico utilizado pelo antigo grupo inglês Monty Python: as mariposas não passavam de "ex-mariposas", exemplares mortos colados aos troncos das árvores.

Mas a discussão sobre continuar ou não utilizando a história das mariposas como recurso pedagógico está longe de uma solução fácil. A esse respeito, o professor David Rudge, da Western Michigan University, escreveu textos como "Does being wrong make Kettlewell wrong for science teaching?". Segundo ele, a manutenção da história no espaço escolar apresenta inúmeras vantagens.

Em contraste com Jerry Coyne, para quem os detalhes contraditórios de tudo o que envolve a história das mariposas Biston inviabilizam sua utilização pedagógica, Rudge pondera que ela constitui um excelente veículo para introduzir os estudantes no conceito de seleção natural. Ele complementa que expor aos estudantes as discrepâncias envolvidas no assunto poderá ser uma excelente forma de sensibilizá-los para a natureza da ciência como processo.

E agora, José?


Pelo relato que os leitores acabaram de ver, dá para notar que o caso das mariposas de Kettlewell tem sido o centro de uma verdadeira ciranda de especulações, de prós e de contras, no mínimo, há quatro anos. Há muitos outros lances "rocambolescos", que envolvem a relação nem um pouco tranqüila entre Kettlewell e seu supervisor, à época dos experimentos, o que é descrito por Judith Hooper em seu livro. Nada disso, entretanto, ocupou até hoje a mídia científica brasileira.

Aqui, novamente nos vemos diante de uma questão delicada, nas quais aspectos como corporativismo da comunidade científica, necessidade de controle, manipulação, de um lado, e desinformação, de outro, estão em jogo. Não é de hoje que o assunto "fede", mas até agora, ao que parece, apenas o nariz dos criacionistas estava com seu olfato apurado...

Assim como no caso do exemplo da girafa – tão perfeito, tão didático, mas falso –, recorrer às mariposas de Manchester e aos experimentos de Kettlewell é tentador, dada a simplicidade com que permitem trabalhar conceitos complexos como evolução e seleção natural.

Mas insistir neles é falsear informações e, de quebra, passar a alunos e professores uma idéia nada ética da ciência. A ciência não tem de ser ensinada como a arte do "jeitinho", mas como uma instância do conhecimento sujeita a falhas, a revisões, a aperfeiçoamentos, a inesperadas complexidades diante do que parecia simples e "didático".

Só assim a ciência e os fazedores de ciência escaparão do dogmatismo de que tantos os acusam.

Referências

COYNE, Jerry. "Not black and white". Nature, 396:35-6, 1998.

DARWIN, Charles. Novo endereço na internet com os textos originais de Darwin, em inglês (incluindo a primeira e a última edição da Origem das espécies): http://pages.britishlibrary.net/charles.darwin

RUDGE, David W. "Does being wrong make Kettlewell wrong for science teaching?". Journal of Biological Education, 35(1):5-11. Outros textos de Rudge: http://homepages.wmich.edu/~rudged

WADE, Nicholas. "Staple of evolutionary teaching may not be textbook case". The New York Times, 18 jun. 2002.

WEINER, Jonathan. O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.



(*) Editora de livros didáticos

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