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16 novembro 2005

Equipando os Santos 5 - Queremos Mais Ética!

Equipando os Santos
Edição nº5 - Teresina, 16/11/2005


Queremos mais ética!


Para o apologista americano Francis Schaeffer, o afrouxamento de um costume ou de uma norma só tem seus desdobramentos e conseqüências plenamente conhecidos nas gerações posteriores. Portanto, decisões aparentemente inocentes, só revelarão seu potencial desintegrador anos depois. Na entrevista abaixo, um jovem ator brasileiro demonstra conhecer bem este mecanismo perverso, embora sua cosmovisão não permita que ele perceba para onde suas atitudes engajadas irão levar nossos filhos e netos.

Bruno Gagliasso, o Júnior da novela América, vai encenar o primeiro beijo gay da televisão brasileira. Sobre o assunto, o ator conversou com a repórter Camila Antunes.

Veja – Você está preparado para dar o primeiro beijo gay da história da novela?

Gagliasso – Eu me joguei de corpo e alma em todas as cenas, e agora não será diferente. Quando o beijo acontecer, o Júnior estará nele por inteiro.

Veja – Em sua opinião, o beijo gay demorou para acontecer?

Gagliasso – Chegou na hora certa. A seqüência de casais homossexuais em três novelas permitiu que a discussão encontrasse a aceitação do público.

Veja – Será que um dia o beijo entre homossexuais deixará de causar espanto?

Gagliasso – Certamente. Daqui a dez anos vamos rir disso como rimos da proibição da minissaia. Ninguém proíbe por muito tempo os direitos de um segmento social cada vez mais inteligente e de poder aquisitivo tão expressivo.

Nos textos anexos temos um pequeno ensaio de Millôr Fernandes contra a televisão e um de Renato Modernell contra o "jeitinho brasileiro". O primeiro autor é ateu, com uma visão fortemente secularista do mundo. O outro também é ateu, mas é animista (crê em uma força presente em todas as coisas, mas meio indiferente ao nosso destino). Ambos estão certíssimos nas posições defendidas nos textos (no de Modernell considerando somente sua opinião geral), mas, de tão inteligentes que são não conseguem, ou não querem, perceber que o problema com suas visões de mundo é justamente que elas não possibilitam uma ética que se sustente. Eles querem viver em um mundo sem Deus, mas se revoltam com o preço que têm que pagar. Os pecados que denunciam são conseqüência justamente da falta de Deus no mundo que justifique padrões morais universais e necessários (que em filosofês quer dizer: válidos em qualquer mundo possível e sem os quais algo não possa existir).

Deus abençoe você!

Allan Ribeiro
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TELEANTEVISÃO


Meu amigo, sente-se cansado, abatido, desmoralizado, com a consciência de que a vida é vulgar,que nada mais vale nada?
Acha, permanentemente, que a existência perdeu todos os valores, que não há mais ética, estética, nenhum objetivo mais a atingir?
Sua vista está obnubilada por permanente poluição visual?
O mundo chegou a uma comercialização (vem aí o trocadilho!) a qualquer preço?

NÃO DESESPERE
Telefone-nos imediatamente e destruiremos logo o seu aparelho de televisão GRÁTIS!
Sem televisão você será um homem inteiramente novo (ou melhor, velho).
Sem televisão você voltará a ver a vida pelo lado de fora.
Sem televisão seus filhos púberes não aprenderão que o objetivo da existência é parasitar os mais velhos o tempo todo, enquanto lhes colocam o dedo na cara, acusando-os disso, daquilo e sobretudo daquiloutro.
Sem televisão os pais não se defenderão dos filhos botando a culpa na sociedade.
Sem televisão sua mulher não se sentirá mais esmagada pelo seu machismo e ansiosa "por um tempo" e "por seu próprio espaço".
Sem televisão você não se sentirá mais derrotado se "não levar vantagem em tudo".
Sem televisão seus filhos aprenderão que erótico não é só transar feito cachorro, e que transa só se realiza plenamente com carinho e motivação psicológica e não apenas com chupões babosos de sapos dendrobatas (sapos-veneno-de-flecha).
E seus filhos, e você mesmo, poderão se livrar desse processo social démodé, serôdio, descambado (dicionário, rápido. Pode ser eletrônico!)

SEM TELEVISÃO SUA CASA SERÁ DE NOVO UM LAR

Millôr Fernandes, Veja, 9 de novembro de 2005.

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Pipoca em Quioto
Por Renato Modernell,
Jornalista, escritor e colunista do site AOL Brasil

Anos atrás, numa viagem de trabalho ao Japão, sucedeu-me um fato curioso. Numa noite fria de inverno, eu caminhava por uma calçada daquela esplêndida cidade, Quioto, quando fui atraído por um aroma irresistível de pipoca que vinha de um cinema. Entrei no saguão e fiz o gesto para pedir uma porção, em um saquinho que, aliás, tinha o mesmo conceito minimalista de um bonsai. A atendente, uma senhora de certa idade, indicou-me o preço: 200 ienes.

Ao juntar meus trocados, atingi a cifra de 199 ienes. Como estamos acostumados por aqui, esperei ser dispensado daquele último e irrelevante iene que faltava. Nada disso. A senhora, antes indiferente à minha aflição de catar moedas, tampouco se abalou com a trabalheira que ela própria teve, ao sair em busca de troco para a nota de 10 mil ienes que por fim lhe dei, como último recurso.

Se eu soubesse falar japonês, teria lhe proposto devolver uma pipoca para compensar o iene faltante. Sim, porque o diminuto saquinho não comportaria mais que 200 unidades. O que eu não desejava, de modo algum, era abrir mão de comer as outras 199 pipocas naquela noite fria e solitária. Bem, o idioma não teria sido uma barreira, se sentisse que ela estava aberta a negociações. Não era o caso, como já viram.

Não esqueci esse episódio. Para mim, ele ficou como o emblema da inflexibilidade dessas gentes do hemisfério norte, onde vivem nossos antípodas éticos. Não sei se invejo ou lastimo as pessoas nascidas e criadas em países que funcionam direito. Perdoem-me, mas admiro um trem que sai pontualmente às 15h12 e chega às 16h54, mesmo sabendo que seus passageiros irão jantar às 18h e fazer sexo às 21h30, se é que chegarão a tanto.

Mas eu, aqui, chego ao ponto que me intriga. Compartilho minha dúvida com o leitor: será possível ser inflexível nas coisas do cenário social (horário dos transportes, prevenção da Aids, aplicação da justiça etc.) e flexível nas miudezas do dia-a-dia (o troco da pipoca, um jeito de guardar lugar para um amigo na fila do cinema)? Ou esse atributo tropical, a flexibilidade, valerá sempre para os dois lados, para o bem e para o mal, representando ao mesmo tempo a nossa salvação e a nossa ruína?

Aqui de novo sinto-me compelido a entrar em cena. Não almejo a isenção do sociólogo, sou no máximo um transeunte honoris causa das ruas de São Paulo. Pois eis que um dia desses eu estava num ônibus. Um ônibus mambembe, baleado, diga-se, desses que operam nas linhas que não cruzam bairros chiques. No interior do veículo, vários avisos aos passageiros. Um deles dizia: “Proibido descer pela porta da frente”. E um complemento claramente adicionado depois: “Devido à fiscalização”. Nesse caso, portanto, a inflexibilidade era vinculada ao risco do flagrante, não à infração em si. Há 500 anos temos esse acordo de cavalheiros. Mas eu, pelo menos, nunca o tinha visto expresso em público.

Outro aviso no mesmo ônibus: “Respeitar o idoso é respeitar a si mesmo. Decreto municipal n° 35.411/95”. Este, convenhamos, é uma pérola. Aqui o poder público decreta algo de natureza filosófica, como querendo cunhar um provérbio. É também uma asserção hermética (mandrake, dizíamos no Sul), cujos termos não se conectam de forma direta; a não ser, é claro, que o próprio leitor seja um cidadão entrado em anos, mas duvido que tenha sido essa a intenção do redator. Por fim, trata-se de um aviso muito genérico. Quase me desobriga a obedecê-lo, pois não me diz o que devo fazer, na prática, para respeitar o idoso.

E há ainda um quarto aviso no ônibus: “Passe escolar só com carteirinha. Não insista”. Esta segunda frase, mero reforço da primeira, revela de forma cabal o quanto nosso ímpeto à transgressão – ou à flexibilidade, palavra que os executivos herdaram dos alternativos – pode ser um problema para nós mesmos.

Não me excluo da tropa. Pelo contrário. Ao perceber o ônibus atravancado no trânsito, em frente a uma padaria próxima ao ponto onde pretendia descer, vi que seria mais fácil seguir a pé. Fiz sinal ao cobrador, homem de bigodinho ralo e bem-aparado, para que desse um jeito de me abrir a porta. Sem demonstrar surpresa, ele deu duas batidinhas com sua grossa aliança dourada na barra de ferro da catraca. Aquele tinido sutil, plim-plim, quase inaudível na barulheira da cidade, foi captado lá na frente pelo motorista, que apertou um botão, e pronto: a porta se abriu à minha frente.

Saí do ônibus aliviado, mas não de todo satisfeito comigo mesmo. Vá lá: saí mais brasileiro do que havia entrado. Tentei me defender desse incômodo com um raciocínio suspeito. Pensei: “Que diferença faz o motorista me abrir a porta aqui ou ali adiante?” Fiz o possível para não ouvir, de mim mesmo, a resposta do guardião da ética: “Ali adiante é o ponto, aqui não é”. Portanto, não importava se faltassem só 30 metros. Em Quioto, a japonesa não quis saber se me faltavam um ou 50 ienes.

Continuei com raciocínios nacionalistas: “Só fiz isso porque o trânsito está parado”, pensei. “Senão eu esperava.” Como sempre, eu tinha sólidos argumentos para enganar a mim mesmo. Conheço este país. Sei de gente que circula livremente de carro em São Paulo, em seu dia de rodízio, valendo-se de um passe de médico presenteado por um tio que se mudou para o interior. Sei também que outros pagam uma cervejinha ao funcionário encarregado do emplacamento do veículo, e com isso conseguem dele uma folga no cabo do lacre (flexibilidade é o nosso tema de hoje) que permite esconder a placa traseira dentro do porta-malas, e assim enganar o guarda. Sei também de quem consegue burlar o rodízio com uma solução caseira, forjando um 8, com fita isolante, numa placa que na realidade tem final 3.

Isso, aliás, nem deveria se tão grave num país em que dois presidentes da república, pelo que já li, flexibilizaram suas respectivas idades em documentos oficiais – Vargas, me parece, diminuiu um ano e Goulart aumentou um – e nada aconteceu com eles. Já o craque Leônidas da Silva, o Diamante Negro, não teve a mesma sorte, e acabou preso por falsificar o certificado militar. Não podia mudar a cor da pele, quem sabe foi isso que pesou.

Há algo de belo, para nós próprios, nesse modo de ser que não é regido pela regra, pelo horário, pela medida exata, e muito menos por um sentido de equanimidade. Desço do ônibus (fora do ponto, já sabemos) e entro na padaria. O garçom limpa uma mesa quadrada com movimentos circulares. Os cantos da mesa permanecem engordurados e sujos, com os farelos deixados pelo cliente anterior.

De tudo fica um pouco, já disseram. Sim, vivemos num país de gestos inacabados: reformas agrárias, educacionais, fiscais, pavimentações de ruas e ajardinamentos de praças, tudo é feito meio como esse rapaz da padaria esfrega a mesa – em círculos, e o que está fora do círculo se dilui no esquecimento. Falta o ato completo. Falta a medida exata.

Peço uma vitamina na padaria. O funcionário sabe que, no meu íntimo, espero pelo “chorinho” de praxe, aquele excedente que às vezes chega a ser uma segunda dose. Se eu tomar, ele pode contar com um reforço na gorjeta. Ou seja, topei o jogo. No frigir dos ovos, o funcionário negocia no paralelo, com a matéria-prima do patrão. Se eu não tomar, ele próprio toma, pronto, nada se perde, tudo se transforma.

Na nossa vida diária, essa coisa saudável, a flexibilidade, corre o risco de degenerar em lassidão. Basta um descuido para aquilo que é flexível se tornar volátil – e aí, adeus. Não sabemos ao certo em que momento isso acontece. Tudo à nossa volta inspira complacência. Ninguém protestou, naquele ônibus, quando desci fora do ponto.

Flexibilidade é uma bela palavra. Esse xis no meio dá a idéia do arco que se distende, de algo que acumula energia ao ganhar nova forma. Flexibilidade é hoje a pedalada de Robinho, como outrora foi a ginga de corpo de Mané Garrincha, que “entortava” os beques, e antes ainda a elástica bicicleta de Leônidas, o Diamante Negro, também chamado Homem de Borracha. Mas flexibilidade é também, pelo lado negativo, a manobra do cartola da federação que ajeita as coisas conforme os interesses dos grandes clubes e das grandes redes de televisão.

O cerne da questão é descobrir se uma coisa pode existir sem a outra. O leitor consciencioso dirá que sim. Fará um raciocínio mais ou menos deste tipo: conforme aumenta o nível cultural e a consciência social de um povo, mais seus cidadãos saberão discernir os momentos em que devem ser rígidos ou flexíveis. Torço para que esse leitor esteja certo. Mas tenho cá minhas dúvidas. O caráter (no seu sentido mais profundo, que tem a ver com o sangue) a todo instante supera a ética (que tem a ver com a consciência).

Talvez a flexibilidade salvadora seja aquela cultivada pelos budistas. Sua disciplina austera prepara o espírito para lidar com as adversidades da vida real. A rigidez interna serve de lastro à maleabilidade externa. Em outras palavras: dançar conforme a música sem poluir a essência. Mas também podemos pensar em Leônidas, duro como o diamante, mole como a borracha.
No plano pessoal, como para uma nação, a conquista da flexibilidade (ou, melhor dizendo, sua justa “calibragem”) é um processo alquímico. Vivemos em um país que é um laboratório cultural. Sabemos disso. Mas não sabemos ainda se um ônibus deve ou não deve parar fora do ponto; se o “chorinho” no balcão da padaria é bom ou ruim, a longo prazo; e se as nossas promessas e dívidas, mesmo de pipocas, devem ser pagas até o último iene, como em Quioto.

16/11/2005

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