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03 março 2006

Equipando os Santos 10 - Para onde estamos indo?

Equipando os Santos
Edição n° 10 - Teresina, 03/03/2006

Para onde estamos indo?

O crítico literário Harold Bloom acaba de lançar um livro em que analisa o Velho e o Novo Testamento e chega à conclusão de que não existe algo que possa ser chamado de uma cultura judaico-cristã. Em outras palavras, não há continuidade entre as duas culturas (judaica e cristã). Este conceito seria artificial e teria sido forçado pelo apóstolo Paulo, influenciado pelo pensamento helenista, em alta na época.

É muito perigoso comentar sobre um livro que não se leu (só tive acesso à resenha publicada recentemente na revista Veja), mas eu gostaria de evidenciar alguns pontos que julgo importantes.

Bloom leu toda a Bíblia para formular sua tese. Ele diz que o Deus no Velho Testamento e o Deus no Novo Testamento são completamente diferentes. Um é zangado e o outro amoroso. Alías, segundo ele, o próprio Jesus seria diferente nos Evangelhos e nas cartas de Paulo. Em primeiro lugar, esta não é uma tese nova, embora o peso intelectual de Bloom dê a ela mais evidência do que merece. Em segundo lugar, eu também li a Bíblia toda e, quanto mais leio, mais me impressiona a coerência e a unidade entre o texto do VT e o do NT. Exatamente o contrário do que diz a teoria! É claro que se pode argumentar que Harold Bloom estaria muito melhor aparelhado para fazer um julgamento desta ordem do que eu. E aqui está o ponto em que quero chegar. O VT é todo impregnado por uma profunda misericórdia. As ações de Jesus também. Ora, não existe misericórdia sem amor! Eis porque creio. Este é um fato objetivo que qualquer ser racional poderia perceber lendo a Bíblia. A dificuldade de pessoas como Bloom em admitir isso demonstra que possuem filtros ideológicos que os impedem de aceitar a verdade, ou seja, a tese dele foi formulada para satisfazer sua visão de mundo. Se a visão de mundo é equivocada, não importa o quanto a tese pareça lógica, ela sempre será igualmente equivocada (a não ser que traga a negação da cosmovisão). Aqui não importa o quão refinada seja a técnica de que ele dispôs para fazer sua análise, o resultado sempre será distorcido pela ideologia, porque já partiu de princípios falsos.

E a negação disso tem construído um mundo cada vez pior, (Já falamos a respeito na edição n° 5 – Queremos mais ética!). Os textos de hoje mostram a perplexidade de pessoas que não professam a cosmovisão cristã, mas sentem-se atordoadas com o resultado das ideologias reinantes. Os dois artigos foram retirados da revista Veja. Um é de Lya Luft, colunista e membro da Academia Brasileira de Letras e fala sobre a relação entre pais e filhos nos dias de hoje. O outro é do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, tratando do recente show dos Rolling Stones no Rio de Janeiro e o da banda U2 em São Paulo. Reflitam e me digam o que acharam.


Deus abençoe você!
Allan Ribeiro
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Irresponsáveis e Incompetentes
Lya Luft

Não, hoje não falo de políticos nem de governantes, mas de nós, todos nós, seres humanos: somos um bicho muito estranho.

Se fôssemos uns burgueses instalados e resolvidos, não seríamos tema de arte nenhuma e de nenhuma reflexão, nem mesmo desta colunista. Do jeito que somos, porém, muitas vidas seriam insuficientes para tanta perplexidade, raiva e ternura diante dessa coisa desamparada e incoerente que somos.

Vivemos mergulhados em mistério: nem a ciência mais sofisticada consegue explicar inteiramente nossa origem e nosso destino. O medo e o assombro marcam nossa trajetória de crianças assustadas diante da realidade cruel: em boa parte, somos responsáveis por nosso presente, nosso futuro, nossas escolhas e pelas pessoas a quem amamos.

Não somos deuses: por isso, não podemos evitar fatalidades. Em bom português, nem quando se trata de nossos filhos podemos evitar que eles quebrem a cara no aprendizado de sua própria vida. Ao contrário, é bom deixá-los com a liberdade essencial para fazer escolhas, mesmo erradas, e ir construindo seu destino.

Mas somos infantis, cheios de preconceito e medo, com idéias tortas ou vagas. Estamos cheios de teorias mal interpretadas e pessimamente aplicadas sobre como fazer (ah, os patéticos manuais de vida sexual...), parir e criar esses que o destino entrega a nós, o mais frágil de todos os animais.

As teorias falseadas, somadas à nossa insegurança e medo, resultam em falta de naturalidade e na negação da voz interior chamada bom senso, que dispensaria muitas receitas e tolices. A responsabilidade assusta e pode paralisar, sem esse ingrediente essencial que é o instinto profundo de proteger, de amar, de ajudar a crescer esse outro tão nosso e tão fora de nós.
O que vemos são crianças e adolescentes tendo em casa um "gato" sarado e uma "gatinha" aflitamente sensual – em lugar de pai e mãe; dois amigões sem autoridade nem segurança. Em quem vão confiar os nossos filhos?

Falo de jovens que usam álcool ou outras drogas, muitas vezes com a ciência dos pais que se omitem. Como recusar, como proibir, se eles próprios usam e abusam? Se estão ocupados com outras coisas, ignorantes do que se passa em sua casa? Se têm medo de contrariar os filhos e perder seu amor... como se amor se comprasse com permissividade ou dinheiro solto?
Falo aqui de quase crianças, que celebram recordes de beijos na boca com os mais variados parceiros numa só noite, em festinhas idiotas, enquanto pais e mães acham graça. Toda uma geração adulta irresponsável ignora não só as doenças infecto-contagiosas que assim se adquirem (que o digam os pediatras), mas também a prematura excitação sexual mal dirigida e mal digerida, deixando os pobres lesados na hora da bela aventura existencial que é o sexo, hoje tão banalizado.

Falo dos jovens, alguns quase crianças, que fazem roleta-russa nos rachas em nossas ruas ou em caronas com outros jovens drogados (álcool também é droga), cujos pais depois os buscarão no necrotério, roídos de culpa e de horror.

Tendo filho, a gente é responsável. Com limitações naturais, mas gravemente responsável, sim, senhores. Mas quem hoje está maduro para ser pai e mãe, quem consegue esquecer seus próprios dramas fúteis para se dedicar, para abrir espaço de ternura, para exercer a autoridade conferida pela natureza, quando sociedade e cultura falam em liberdade total como se ela garantisse vida e crescimento?

Ando cansada de certos assuntos, e o desleixo com que tratamos nossos filhos é um deles. Pais com medo dos filhos, professores com medo dos alunos, filhos e alunos, jovens de todas as idades, perdidões porque não têm em quem confiar, a quem atribuir a autoridade necessária, a quem respeitar e obedecer.

O século da bagunça generalizada começou há poucos anos: que não seja o século do fim definitivo da verdadeira infância e juventude, quando se tem pai e mãe em cuja mão segurar para não tropeçar demais, cedo demais, com feridas definitivas e males incuráveis, na ante-sala da prematura morte.

Lya Luft é escritora

Veja, edição 1944 . 22 de fevereiro de 2006
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Histeria, Patetice e Rock'n'roll
Roberto Pompeu de Toledo

"Vai ser o delírio", diz o repórter.
É o delírio. Sem o incentivo da TV,
o delírio não seria tão delirante.

A infausta passagem pelo Brasil de dois famosos conjuntos de rock deu ensejo a que os meios de comunicação em geral, a televisão em particular, se dessem com gosto e empenho a uma de suas práticas prediletas – a de incitar a histeria e/ou idiotia da população. "O que você vai sentir quando eles entrarem no palco?", perguntava a repórter, esticando o microfone para um grupo de mocinhas, instantes antes do show do grupo U2. "Vou morrer", disse uma. "Vou surtar", disse outra, tudo entre gritinhos e pulinhos. Era o que a repórter queria ouvir. Morrer, surtar – que delícia! Volta para o estúdio, e os apresentadores do telejornal sorriem, satisfeitos como um político do PSDB depois de esvaziar uma garrafa de Amarone della Valpolicella, corte Sant'Alda, safra 1995, no restaurante Massimo.

Dias antes dos shows, como é de rigor, já havia pessoas acampadas nos locais onde aconteceriam. Imagina-se o desconforto desse novo povo das ruas, a dormir mal, comer pior e sofrer os efeitos dramáticos da falta de um banheiro. Alguém dotado de um mínimo de espírito humanitário procuraria encaminhar essas pessoas a um tratamento psicológico. Não os meios de comunicação. Estes se deleitam diante de tais faquires do universo pop. "Há quanto tempo vocês estão aqui?", pergunta-lhes o repórter. "Dois dias? E o outro lá – três? E o outro – cinco?" E é um maravilhamento só. "Vale a pena?" "Vale, qualquer sacrifício vale." E a televisão exalta o exemplo desses jovens que deixam tudo, conforto, estudo, trabalho, em honra dos ídolos. São os nossos muçulmanos, em tempo de hajj, quando vale qualquer sacrifício, inclusive morrer pisoteado, para visitar os lugares do profeta.

O líder dos Rolling Stones marcha com passos enérgicos de um lado para outro do palco, move os braços de modo decidido, nunca sorri. Abstraia-se o som infernal e, se aquilo fosse cinema mudo, teríamos a cena de um recruta que se perdeu do regimento e procura desesperadamente o rumo, no meio do campo de batalha. Ou, então, a ação de uma dona-de-casa enraivecida, andando de um lado para outro da casa, a mostrar à faxineira como ela fez tudo errado. Não, ninguém está lá para tapar os ouvidos e brincar de cinema mudo. Na verdade essas pessoas estão lá para algo que vai além de ver ou escutar – adorar. "Agora ele se aproxima do público", conta o repórter. "Vai ser o delírio." É o delírio. Se não fosse a presença das câmeras de TV, talvez não se configurasse delírio tão delirante. A TV e o delírio têm tudo a ver.

O líder dos Rolling Stones, na boa tradição do rock, é um nulo em matéria de política. Um "alienado", como se dizia, numa ofensa pior do que xingar a mãe, na época em que ele era jovem. Já Bono, do U2, se entrega à militância em favor de todas as boas causas, tantas que alguém lhe precisaria dizer: "Calma, rapaz! Assim nem Madre Teresa de Calcutá..." Ele considera que o presidente Lula está fazendo muito para diminuir a fome e a pobreza no mundo. Com isso, aumentou em 100% a quantidade de pessoas que partilham desse pensamento – agora ele se soma ao próprio Lula. Ao ir ao encontro do presidente brasileiro, Bono disse que visitar Brasília sempre fora seu sonho. Como? Alguém pode ter o sonho de visitar Brasília? Ou o rapaz está mal, muito mal de sonhos, ou foi insincero. E, se foi insincero nesse ponto, será que também nas causas que defende...

Não. Afastemos as suspeitas descabidas. Importante é que ele chamou uma mocinha de Volta Redonda para dançar no palco. "Que sortuda", exclamou a apresentadora do telejornal. A apresentadora aparentemente gostaria de estar no lugar da mocinha. Ou talvez não. Talvez o que ela quisesse era mostrar que também estava no clima. Não cabiam dissensões. A TV empenhava-se em fazer crer que era saudável, bonito e razoável que todos os brasileiros reagissem com efusões desmesuradas, quanto mais desmesuradas melhor, à presença dos ídolos do rock. O marido da mocinha de Volta Redonda disse que não teve ciúme, nem quando ela afagou o queixo do cantor, bem apertadinha, nem quando lhe sapecou um beijinho na boca. "Fã é assim mesmo", disse. A mocinha, naquele momento, era o retrato do ser humano subjugado. Desceria aos infernos com seu ídolo, o seguiria nas batalhas mais espinhosas pela justiça no mundo, juntaria à dele a voz pelo hexa do Brasil e pela glória da irredenta Irlanda. Fã é assim mesmo.

Bono, portento de tolerância que é, uniu os símbolos do cristianismo, do judaísmo e do Islã na mesma faixa enrolada à testa. Em outro momento, recitou os nomes dos países da América Latina e, quando falou "Argentina", o público vaiou. A platéia provou que, em matéria de tolerância, não é digna de Bono. Em compensação, os coleguinhas de escola do filho brasileiro de Mick Jagger, o homem dos Rolling Stones, mostraram que estão no clima. Quando Jagger apareceu por lá, causou tumulto. Provou-se que as lições da TV estão sendo bem aproveitadas. A histeria e a parvoíce já se implantaram entre as novas gerações. Com isso está garantida sua continuidade.

Veja, edição 1945 . 1º de março de 2006

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